O toque de recolher soou outra vez ordenando a todos do pequeno município de Arujá-SP. Já era chegado o momento de se alojar em casa. Portas e janelas fechadas e a lembrança de tempos mais pacatos lhe vêm à memória, mas que isso importa? A correria do dia-a-dia era a mesma de anos atrás, mas o temor era totalmente novo.
Há pouco a grande São Paulo estava sitiada e seu suprimento de água e alimentos apenas diminuía. Quem teve oportunidades fugiu antes da cidade ser sitiada. A maioria, por outro lado, permaneceu temerosa de abandonar velhos hábitos ou simplesmente não acreditou que as coisas chegariam a essa proporção. Cristiano era o segundo caso. Sonhos repetidos com explosões em forma de cogumelo e um rastro de morte percorriam sua mente noite após noite.
– Eu devia procurar um psicólogo ou psicanalista… Talvez esse sonho tenha algum significado.
Mas Cristiano era um procrastinador. Mesmo em seu trabalho, muitas vezes preferia deixar as tarefas e relatórios pra última hora. Não é que fosse ineficiente, mas era movido pela ansiedade e se não conseguisse um mínimo de adrenalina não conseguia empurrar os projetos da empresa (ou os pessoais) adiante.
Ele ainda pensava em Ana Júlia, antiga namorada do setor de contabilidade, mas que havia sido transferida para o Rio de Janeiro antes da 3.ª Guerra eclodir. A derrocada do Rio e a derribada de símbolos nacionais preocupava as autoridades pois São Paulo era o último foco de resistência aos invasores. Cristiano nunca mais soube dela, mesmo tendo sido ele quem terminara, na época, por medo de compromisso. O mesmo tipo de medo que fez com que tivesse cortado 2 dedos de cada uma de suas mãos para se livrar do fronte de combate Há poucos meses. “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil o caramba!” – ele dizia a si mesmo.
Não houve tratado de paz, mas já fazia 2 meses que nem um único tiro era ouvido em toda grande São Paulo. E isso era por demais estranho tendo em vista esses tempos difíceis.
– “O estado de sítio à grande São Paulo já está em seu 6.º mês após a grande batalha da Anhanguera e ainda não há sinal de uma possível saída diplomática…”
– Eu nem sei pra que ainda vejo jornal… – pensava Cristiano. Estou morto de sono… O que tem nos outros canais?
– Arrependei-vos pois vos é chegado o reino de Deus!
– Ah, que maravilha! Programa religioso… Se bem que essa moça falando é bonitinha.
– “…Pois quando estiverem dizendo: Paz e segurança! então lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida; e de modo nenhum escaparão.” (1 Tessalonicenses 5:3).
– Eita palhaçada…
– “Por que nos assentamos ainda? juntai-vos e entremos nas cidades fortes, e ali pereçamos; pois o Senhor nosso Deus nos destinou a perecer e nos deu a beber água de fel; porquanto pecamos contra o Senhor. Esperamos a paz, porém não chegou bem algum; e o tempo da cura, e eis o terror.” – palavras fortes do profeta Jeremias no capítulo 8, versículos 14 e 15 de seu livro. Muitos pensam que haverá paz, mas não haverá. O fim se aproxima, reconciliem-se com Deus! Arrependei-vos pois se aproxima o tempo do fim!
– Acho melhor dormir – e desligou a TV – tenho que acordar cedo amanhã.
Porém, os pesadelos ficavam mais vívidos e Cristiano não dormia mais que 3 ou 4 horas por noite.
Na semana seguinte, Cristiano descobriu, por meio de uma prima recém-convertida ao Cristianismo, que a moça que vira na TV (a quem ele sarcasticamente chamava de “profetiza” tanto mentalmente quanto quando conversava com seus colegas) havia predito com 5 anos de antecedência a derrocada do Japão, dos EUA, da União Européia, a resistência sul-americana, a destruição do Cristo redentor e agora havia mencionado o nome de Arujá em seu último sermão.
– Vi uma grande luz e uma onda de destruição e já não havia mais Arujá… Todas as noites tenho o mesmo sonho e sinto que não devemos “recalcitrar contra os grilhões” irmãos. Todos sabemos que só há duas formas de deixar esse mundo. Ser arrebatados por Cristo ou pela morte… Mas em tudo vejo a bondade de Deus de nos permitir nos preparar para nos encontrarmos com ele. Oremos…
A essa altura Cristiano começava a pensar se os detalhes que ela vinha revelando não eram mesmo um reflexo do futuro e, se era, de quanto tempo estaríamos falando. Ele visitou a comunidade onde a moça de nome Jennifer pregava e por três vezes ele a ouviu descrever seus sonhos de uma grande explosão e eram idênticos aos seus. De fato, a ideia o perturbava tanto que chegou a descobrir em qual ponto de ônibus Jennifer pegava sua condução diária para o CRAS local, onde a moça trabalhava de dia, aparentemente inatingível ante suas próprias previsões. Por vezes chegou a tentar entender o ponto de vista de Jennifer enquanto ela lhe falava da vida, da morte e de Jesus.
– O apóstolo Paulo dizia que “o viver é Cristo e o morrer é ganho”. No princípio os monges cristãos tinham o hábito de se saudarem com a famosa frase “carpe diem” (“aproveite o dia”, em latim) e a frase hoje caiu no gosto popular pra satisfazer os desejos desenfreados de pessoas que tem um rei na barriga, mas tudo no Cristianismo é um enigma de vida e morte. Não vejo as pessoas mencionarem, por exemplo, que os monges que eram saudados com essa frase respondiam “memento mori” (que significa “lembre-se que vai morrer”). A vida sem Cristo não tem propósito. Ele mesmo disse que “Quem amar essa vida perdê-lá-á, mas quem perder a vida por amor de mim achá-la-á”. Todo cristão deve estar sempre pronto a morrer.
– Ok, você faz ideia de como esse papo soa perturbador pra mim? Tipo, é bonito, cipá dá pra comparar com uma poesia gótica, mas na prática ninguém quer morrer.
– Não se trata de querer morrer, mas encontrar seu propósito. Deus nos fez com um objetivo e uma vez descoberto você deve viver e morrer por ele se preciso.
– E qual é seu objetivo?
– Que as pessoas saibam que Cristo é o salvador e que não precisam temer a morte se tiverem fé. Assim como Jesus ressuscitou, assim também ressuscitarão seus amado servos que amparam ao próximo, obedecem e proclamam seus mandamentos ao mundo. Todas as religiões tem sua versão de fim do mundo, mas só conheço o Cristianismo nos dizendo pra nos preparar pro nosso próprio fim. O mundo talvez não acabe nessa guerra, mas muitos de nós vamos perecer.
– Você realmente acredita nisso?
– De todo meu coração.
Aquelas palavras fervilhavam na mente de Cristiano, até que, 2 dias depois o jornal anunciou que, segundo fontes seguras, os invasores haviam realizado a construção de 4 objetos estranhos nos 4 pontos cardeais das cidades da grande São Paulo. Ninguém sabia do que se tratava e aviões começavam a circular de um lado para o outro. Pessoas ligavam umas para as outras alegando que algo as detinha e não havia como deixar as imediações como se houvesse uma barreira invisível que não lhes deixava sair dos limites daqueles 4 objetos que pareciam rodas com símbolos que lembravam olhos como nas penas de um pavão.
– O que há com esses aviões? – Cristiano se perguntava enquanto um elemento novo surgiu em sua mente, do qual não se lembrava: havia algo caindo de um desses aviões em seu sonho antes da explosão, mas esse detalhe não estava claro para Cristiano até ter um “deja vu”.
– Estranho… – Cristiano pensava – era exatamente assim que eu está vestido, só falta um carro frear bruscamente quando uma garotinha de vestido amarelo for pegar a bola em frente à padaria…
– Sai da frente guria! – gritava o motorista de um Gol prata para um menina por volta de 6 anos que pegava sua bola amarela e corria pros braços da mãe.
– Não! Não pode ser! Hoje não!
Cristiano avistou Jennifer que, sem se dar conta de sua aproximação, adentra a uma lotação como num dia qualquer em direção ao trabalho. Ele corre e grita para que o cobrador lhe abra a porta e adentra no exato momento em que um avião liberaria algo que descia vagarosamente, para quem visse, em direção ao solo.
A Cristiano sobrou tempo de ofegar apenas uma frase disparada a Jennifer de supetão quando seus olhares se encontram:
– O dia é hoje. Para onde fugir?
– Para lugar nenhum. – disse Jennifer com expressão severa.
Houve um clarão… um grande estrondo e logo… não havia mais Arujá.