30 anos… Depois de 30 anos… O que Félix poderia querer de tão urgente pra me mandar uma mensagem por um meio tão arcaico? Uma carta!
Félix não fazia o tipo de cinquentão atrasado, ele sempre foi pelo progresso. Adorava tecnologia. Quem parasse pra conversar com ele na nossa turma da 7.ª série (faz mais tempo do que eu gostaria que fizesse) ouviria umas mil teorias malucas sobre ficção científica: astronautas em Marte, computadores de mão, telefones capazes de videoconferência, envio de mensagens instantâneas pelo ar para os 4 cantos do mundo… Hoje ninguém acharia as ideias de Félix absurdas, mas na época as pessoas riam de Félix. Quem o visse hoje, um respeitado professor universitário da UFMG, conferencista, com boa casa, netos, hilux, ninguém o imaginaria como quem realmente era: Félix sofria constantes agressões na escola quando “bullying” nem constava nos dicionários. Como se não bastasse, Beatriz, sua irmã, era cega, o que gerava mais provocações contra Félix quando saía e tentava socializar a irmã numa época em que não havia “educação especial”. Que diabos… Às vezes acho que não existe educação nenhuma de qualquer jeito. Quanto mais se vive mais se percebe o quanto as pessoas podem ser mesquinhas… Mas não Félix. Ele era o tipo de pessoa que valia à pena rever. Embora mandar uma carta de repente, depois de 30 anos, sabendo que poderia mandar um torpedo, um e-mail, fazer uma ligação ou uma videoconferência pelo skype seria mais o estilo dele. Enfim… Eu havia sonhado com ele umas duas vezes nessa semana. Estava com uma máscara de teatro no rosto, como no teatro grego, não conseguia me lembrar da peça, mas a máscara de Félix caía e eu sempre acordava antes de ver seu rosto ou de a máscara cair no chão, como naqueles closes lentos nos filmes.
Me preparo para reencontrá-lo. O local combinado é bem bizarro, um resort encrustado na Serra da Mantiqueira há algumas horas de viagem. Não sei de onde diabos Félix tirou a ideia de me convidar pra fazer escalada. Vai ser a terceira vez que faço uma escalada de verdade na vida, mas me pergunto se ainda tenho idade pra isso. Cansa bem mais do que parece.
-Félix! Finalmente meu chapa! Há quanto tempo?
-Bem-vindo Marcos! O que achou das acomodações do Resort?
-Grande Félix! As acomodações são ótimas. Mas eu não ando tão pobre que não pudesse pagar a hospedagem.
-Besteira! Deixe de ser orgulhoso homem! Estamos entre amigos, estamos de férias e eu lhe devia esse presente. Aliás, siga-me, tenho algo pra te mostrar.
-E o que seria?
-Duas portas à direita ao final do corredor. Vamos! – dizia ele com um ânimo infantil e eu me surpreenderia com a visão momentos adiante.
-Marretas?!
-Sim, marretas! Um investimento alternativo em terapia contra raiva. Alguns executivos vem descarregado seu stress nisso aqui. A propósito, o Resort é meu e a ideia das marretas é realmente uma inovação agradável. Pegue esta de 5kg e me acompanhe.
-Ok então, onde exatamente eu devo… Puta que o pariu, Félix! O que você está fazendo?
-Hahahaha! Demolindo meu caro! É para isso que a sala é feita, para ser destruída! Lance todas as suas frustrações sobre a sala! Vai se sentir ótimo!
Nesse ponto as coisas ficam um tanto surreais. A sala estava delicadamente ornamentada com quadros de arte, jarros de flores, estantes com livros, compartimentos, móveis de madeira e Félix estava pondo tudo abaixo a cacetadas. Um estrondo atrás do outro. Tento fazer o mesmo a uma certa distância. Os golpes de Félix são violentos e desferidos em todas as direções. Não poupava nem o piso. Quebrei alguns espelhos apenas para agradar Félix, mas detestei toda aquela barulheira e o pó que saia da parede iria me fazer espirrar a qualquer momento. Félix agora está ensopado de suor e com uma expressão difícil de ler, quase como se seu rosto não transparecesse nada.
-Félix? Acabou?
-… Sim. Que tal almoçarmos em uma hora? O buffet daqui é ótimo.
Havia algo de insano nos olhos de Félix. Seu sorriso durante o almoço mais parecia uma máscara, como em meu sonho, mas é difícil explicar, porque era o rosto dele. Eu tentava entender aquela expressão enquanto ele me falava sobre o resort, sobre as opções de ecoturismo da região, a beleza dos precipícios da serra e da visão que proporcionavam, falou sobre a família em BH, a contabilidade e os impostos, as teorias por trás da estranha “técnica” psicoterápica de que participamos.
Naquela tarde ele me mostrou todas as opções recreativas do resort, escalada, rappel, ecoturismo, piscina, sala de jogos. O lugar era realmente interessante, mas não conseguia deixar de pensar que o sorriso de Félix fosse uma máscara. De fato, sonhei com isso novamente naquela noite.
No dia seguinte, Félix pouco falou durante a escalada. Não me importei porque o esforço de falar enquanto se sobe uma serra em escalada não é exatamente conveniente. Ao final da escalada Félix resolveu quebrar o silêncio.
-Eu venho aqui todos os anos.
-Não sabia disso. A vista daqui é incrível!
-De fato. Mas não é por isso que eu venho aqui. Eu venho pra lembrar…
-Lembrar? Pra lembrar de quê?
-Você se lembra de quando éramos garotos e os “bambambans” começar a provocar minha irmã?
-Não é o tipo de coisa que dá pra esquecer. Uma dúzia de adolescentes encrenqueiro com péssima fama e muita bebida… Péssima combinação. Mas olhe pras vidas que construímos! Onde eles estão agora afinal?
-Isso não muda o que aconteceu… Beatriz se foi naquele dia. E ela não merecia isso…
-Eu preferia não pensar nisso. Eu gostava de Beatriz, você sabe disso. Por que voltar nesse assunto agora?
Félix deu um riso forçado e curto e me disse:
-Marcos, Marcos… Você não se lembra? Faz 32 anos hoje. Ainda me lembro que foi você quem me achou caído enquanto aqueles animais… Nem sei o que teria acontecido sem você lá.
-Ser filho do delegado tinha suas vantagens… Eu só lamento não ter chegado antes. Mas você se recuperou.
-Em 3 meses… Sabe Marcos, você sempre foi a única pessoa que entendia a falta que eu sentia de Beatriz. E a vida continua, não? Dois anos depois você se mudou, continuou a vida.
-E você me mandou aquela carta de despedida com um maço de dinheiro e depois ainda me ajudou a me bancar depois que meu pai morreu. Eu terminei a faculdade de Engenharia, ganhei uns trocados o bastante pra investir e me aposentar cedo, viajei bastante. Só lamento nunca ter tido filhos. Você por outro lado tem a Elisa, virou acadêmico de renome, teve seus 3 filhos, seus netos, o resort. Eu diria que estamos bem, não acha?
-Marcos, eu estou com câncer, Elisa me deixou depois de 25 anos de casados. Você não saberia se eu não dissesse, mas meus filhos estão longe, tão preocupados em cuidar de suas vidas que mal se lembram que tem um pai. Nos vemos 2 vezes por ano e você sabe que pessoas da nossa idade já não tem tantos amigos. E você me perguntou onde estão os “bambambans” hoje. E eu só sei te disser que não sei. E eu me lembro de tudo Marcos…
-Félix… Eu não sei o que dizer… Sinto muito. Mas o que deu na Elisa? E câncer?! Você não devia estar se tratando?
-Eu estou, aqui, agora.
-Desculpe, não sei se entendi.
-Eu não vou morrer numa sala de hospital Marcos. E eu realmente não sei se quero lutar pela vida que tenho. O que é a vida além de fragmentos de beleza envolvidos num oceano de dor e escuridão? Eu só queria que tivesse sido eu e não a Beatriz…
À medida que Félix se aproximava caminhando em direção ao precipício eu entendia… E todas as coisas que eu poderia ter feito eu apenas gritei:
-Félix!
-Sim Marcos? – ele responde plácido como um riacho de caudalosas correntezas.
-…Eu não te condeno.
-Obrigado… amigo.
E Félix sorriu de um jeito que eu não via há anos enquanto sua máscara caía para sempre. Como em meus sonhos…