O Conto do Diabo Inocente

diabo

Era uma vez uma criatura de Deus. Dela pouco sabemos, mas se rebelou contra seu Criador, ganhou adeptos e fez muito barulho desde então.

Alguns vêem nele um herói romântico cujo único erro foi tentar “melhorar” o reino de um tirano absoluto. Outros dizem que todas as suas ações são absurdas e inexplicáveis, que ele é a origem do mal e da crueldade e não compreendem como pôde se rebelar contra quem o fez perfeito, tudo lhe deu e amou até que um dia, esta serpente decidisse, sem mais nem menos, morder a mão que o alimentava… e cuspir no prato.

No julgamento da questão, especialistas se debruçaram na tentativa de entender o caso:

– Veja bem, o Criador é onisciente: ele sabia que isso ia acontecer e mesmo assim o fez. Portanto era da vontade do Criador que assim tudo ocorresse.

– De maneira alguma meu caro! O Rebelde se voltou contra seu Criador por vontade própria, por orgulho! Desejando tomar-lhe o lugar.

– Nada disso! Como alguém poderia viver num universo onde só há uma opção? Uma forma de pensar? Um jeito de ser? E se as coisas pudessem ser diferentes? Nenhum ser consciente deveria ser criado sem o direito de escolha. O Rebelde nos mostrou isso.

– Peraí, mas como ele agiu com vontade própria se seu Criador já sabia que o Rebelde se voltaria contra ele desde o começo? Ele não foi destinado a isso?

– Não diga sandices! Como o Criador poderia criar algo que ele mesmo abomina?

– E por que abomina? Mal é questão de perspectiva. Eu entendo que não é o ideal usar uma faca pra cavar um buraco, mas na falta de uma pá, serve! Entendem? As coisas não precisam ser como o Criador designou. Isso não tem necessariamente de ser mal.

– Tem algum sentido. Mas Eu postulo o mesmo que muitos sábios antes de mim disseram: E se o Rebelde tem a missão de ser um contraponto do Criador? Seu opositor por necessidade lógica como uma antítese do divino? Não lhes parece mais razoável, senhores? Afinal, o próprio Criador disse em seus escritos sagrados “Eu crio o mal” embora alguns insistam em interpretar figuradamente.*

– Ora, isso torna o Criador, no mínimo, conivente com o mal… Ou, em última análise, sua causa, afinal foi ele quem concebeu um universo dualista. Por que uma criação dualista no lugar de um universo mecânico e perfeito? Além disso senhores, o mal é MAL pra nós, de formas diferentes mas é: ora como um frango cevado bem criado para um dia ser abatido, ora como um número destituído de valor. Ao contrário do Criador, que é fonte de toda vida, por mais “sensato” que o Rebelde pareça a alguns, o opositor de nosso Criador não nos ama. E, se não deseja nossa aniquilação (como eu e muitos assim pensam, pois o filho do Criador nos mostrou que o Rebelde é nosso inimigo) no mínimo não se importa conosco enquanto seres de valor feitos à imagem de Deus.

– Ok, então o Criador nos ama… Mas é um amor conivente com sofrimentos, solidão, desastres naturais, oportunidades desiguais, guerras, peste… De certo é intrigante… Pra não dizer incompreensível.

– Mas isso se deve à natureza corrompida do ser humano após o pecado.. O mal não era da vontade do Criador!

– Acredito que os senhores estão ignorando alguns pontos: Supostamente o Criador fez tudo BOM e perfeito, no entanto há nisso outro impasse, o de como a perfeição real poderia decair?! O que garante que o Criador não está do lado errado da balança? Dizer que algo é funcional é diferente de dizer que algo é “bom” ou perfeito, logo ele poderia ter escolhido melhor o vocabulário da Escritura. Ele promete recriar tudo perfeito como foi no princípio, mas no princípio houve o pecado. E, como nós bem sabemos, se acontece uma vez pode e vai acontecer de novo.

– Isso é só um problema de terminologia seu…

– Não, não é. Ou as coisas são ou não são. E o que passar disso é de procedência maligna, lembra? Ou estamos entendendo a natureza criada erradamente ou temos um impasse por imprecisão nas escrituras.

– De fato senhores, o que eu e meus colegas argumentamos é: Por que não querem lidar com a hipótese de um Criador de bondade questionável? Afinal ele e seu filho concordam que apenas o Criador é “bom” e todos devem se curvar à sua vontade. Mesmo os seres úteis e produtivos (pra não usar o termo “bom”) devem sofrer punição eterna por discordar do Criador?

– Não meu caro, entenda, o Criador é incorruptível! O pecado é que leva à morte… e todos irão morrer. Porque todos se fizeram resultado da matriz pecadora, portanto pecadores! Logo, todos merecem morrer. E isso resulta das ações do Rebelde que enganou nossos ancestrais.

– Sim! O Rebelde tenta a humanidade e provoca sua queda, afeta sua forma de pensar, seus gostos…

– E ao comprometer nossa matriz, nossos primeiros pais, ele deformou permanentemente todos que viriam depois.

– Isso não responde ao problema de porque ele permitiu o mal em primeiro lugar. Se pensarmos que no bem temos muitas opções de ação de acordo com nossos talentos, porque deveria existir o mal para validar o livre-arbítrio? Posso amar meus pais e discordar deles, morar longe, desenvolver outros interesses. Por que quem não concorda com o Criador está fadado a ser destruído no futuro? Não me parece razoável.

– E parece razoável que seres conscientes sofram pelas ações desencadeadas pelo Rebelde?

– E quanto a Jó? Esquecem os senhores que todas as ações do Rebelde precisam ser autorizadas pelo Criador? Além do mais, se fomos enganados por que deveríamos ser responsabilizados? Isso sim não parece razoável.

O burburinho entre filósofos e teólogos era como o chiado de uma tv antiga mal sintonizada e uma criança resolve parar ante o debate, como o faria quem, na tentativa de sintonizar um desenho animado numa tv antiga, estivesse incomodado pelo som e imagem incompreensíveis, desejoso de ajudar os pensadores nesse tema difícil:

– Oi… Er… Sabem… Eu tava ouvindo a conversa de vocês e acho que posso ajudar…

– Ora, ora! E o que você acha de nossa discussão pequenino? A quem você daria razão em nosso debate? – pergunta o mestre dos especialistas.

– Bom, acho que nenhum de vocês está de todo errado e nem de todo certo. Quer dizer, se o Criador fez tudo é claro que o mal veio de uma de suas criaturas, mas não acho que Criador é mal nem que seja intolerante a quem discorda dele, até porque, como alguém discordante poderia estar certo se dizem que o Criador conhece todos os futuros? Também não acho que o Criador seja responsável pelo mal…

– Aonde quer chegar pequenino?

– É que meu pai trabalha numa fábrica de peças de carros, sabe? E ele diz que, às vezes, mesmo com todos os cuidados, as máquinas criam algumas peças fora do padrão e não se sabe bem como isso acontece.

– …E?

– Então… e se o Criador não tiver conseguido criar algumas coisas perfeitas, por mais bonitas que parecessem ser? E se o Criador usou uma máquina pra criar as coisas e o Rebelde, na verdade, foi uma das peças que saiu com defeito? Meu pai às vezes tenta reaproveitar as peças defeituosas no trabalho dele, sabe? Nem sempre dá certo… Mas às vezes dá pra reciclar.

– E então?

– É que assim, nem seria da vontade do Criador que o Rebelde existisse, nem seria o jeito que ele nos pede pra viver uma imposição da qual ninguém tivesse liberdade de escolha. A gente tem um motivo de ser, ou até mais de um. Já vi peças que podiam ser usadas em partes diferentes do carro, sabe? Acho que o Rebelde só existe porque, mesmo defeituoso, o Criador respeita a liberdade dele também …mesmo que ele e algumas outras peças não tenham conserto e acabem estragando o funcionamento das máquinas onde são postos… Acho que o Criador tolera o Rebelde porque sabe que algumas, mas nem todas, as peças que saem com defeito ainda podem ser aproveitadas.

– Hahahahaha! – riem os especialistas.

– Muito divertido pequenino!

– Acho melhor deixar isso pros adultos resolverem, criança.

– Olha só, aqui tem R$ 1,50. Vá comprar um picolé.

– Picolé?! Mas eu falo sério moço, se não foi assim e o Rebelde é mau e o Criador é bom, mas usa o Rebelde pra nos dar livre escolha e as pessoas tiveram seus ancestrais corrompidos voluntariamente e, por isso, seus descendentes merecem sofrer, quando o Criador prefere doar seu bem mais precioso por nós ele não está sendo bom nem justo, só está sendo emotivo! Se as pessoas estão estragadas e ou merecem morrer ou se esse é o procedimento padrão do Criador pra peças com defeito, então… porque discordar do Rebelde? Ele não estaria fazendo a vontade primeira do Criador? Ou o Criador está confuso por causa de seus sentimentos então?

– Garoto, você nunca leu que é o coração do homem que é enganoso e não o do Criador?

– Mas o garoto tem razão. O Criador parece estar agindo com a emoção apenas e o Rebelde com a razão.

– Não, não! É exatamente o contrário meu caro! As pessoas são más e merecem castigo do Criador por sua natureza pecaminosa! O Criador é perfeitamente coerente.

– Não entendem? – disse o menino – Nunca conheceram nenhuma pessoa que foi boa pra vocês? Não acho que todos merecem sofrer e morrer, apesar de todos cometermos erros, não temos controle sempre das circunstâncias, do que os outros pensam, ou mesmo de nossas vontades. Somos só peças com defeito esperando reparo. Acho que o Criador também pensa assim… Ele consertaria até o Rebelde se pudesse mas não pode!

– Quanta imaginação! Não sabe você que o Criador tudo pode menino?

– Então poderia ter nos dado livre-arbítrio sem necessidade de um rebelde. Deixe o menino falar…

– Mas o menininho diz que o Criador foi “emotivo” e que para ele nós somos peças apenas! Isso é inaceitável!

– Não fui eu quem disse que o Criador está sendo emotivo. É o jeito que vocês estão colocando a situação… – disse o menino. Sabe, acho que tanto pro Criador como para o Rebelde somos apenas peças. Só que o Rebelde quer inutilizar tudo que tiver defeito e o Criador quer reaproveitar o que der pra reaproveitar. Não tem nada a ver com razão nem emoção. Nós somos coisas pra eles… Mas o Criador gerencia com sustentabilidade.

Então, o mestre dos especialistas se levanta para dar fim ao falatório, afinal, como poderia haver religião sem consenso?

– Calem-se todos! – diz o mestre dos especialistas – Ora, que falatório! O que sabemos com certeza é que o Criador é totalmente justo, mas criou o Rebelde, todavia não aprova suas ações, mas as permite ainda que as abomine. O Rebelde desafiou o Criador e o Criador consentiu com o desafio. Aquele que é tocado pelo pecado do Rebelde deve morrer – o próprio Rebelde o requer, pois essas são as regras do universo do Criador, a quem o Rebelde desobedece, apesar de ser usado para castigar e só poder agir quando o Criador o consente. Longe do Criador a vida é impossível. Entretanto o Rebelde vive pois traga a vida que o Criador pôs em sua criação ao trazer a criação à morte. Mas o Criador, ao pagar o preço por nós com a morte de seu bem mais precioso há de nos livrar da consequência natural do pecado que é o dano da segunda morte e há de recriar a vida destruída em perfeição segunda vez tal qual no princípio!

– Sim, sim! Está certo! – e os especialistas aplaudem de pé!

– Mas moço – diz o pequeno menino enquanto os adultos se levantavam para dar o debate por encerrado. – se for assim, o Criador é injusto por quebrar suas próprias regras sem necessidade e o Rebelde é inocente de seus atos pois pune as pessoas segundo as regras do Criador! Isso não pode estar certo!

…Mas não havia mais ninguém para ouvir o menino. E a questão findou por aí.